O que o Mercador de Veneza nos ensina sobre a importância da advocacia na defesa do consumidor.

Na clássica peça O Mercador de Veneza, William Shakespeare narra a história de Bassanio, um jovem que precisa de dinheiro para cortejar sua amada. Sem recursos próprios, ele recorre a seu amigo Antonio, um próspero mercador, que aceita ser seu fiador. Para obter o empréstimo, Bassanio procura Shylock, um agiota que nutre um ódio pessoal por Antonio.

Shylock aceita conceder o valor solicitado, mas impõe uma condição cruel: caso a dívida não seja quitada no prazo, ele teria direito a uma libra da carne de Antonio.

Com o inadimplemento da dívida, Shylock exige o cumprimento literal do contrato e leva Antonio a julgamento. Bassanio, ao saber da situação, retorna apressadamente, acompanhado de um advogado e com uma proposta de pagamento em dobro para saldar a dívida. Shylock, no entanto, se recusa a aceitar qualquer valor em dinheiro, insistindo em obter a tão cobrada libra de carne.

O Tribunal de Veneza, preso à rigidez contratual, se vê inclinado a permitir a execução da cláusula. Contudo, o advogado — que na verdade é Porcia, uma mulher disfarçada — apresenta uma brilhante interpretação jurídica: o contrato autorizava Shylock a retirar a carne, mas não a derramar uma única gota de sangue. Caso o fizesse, ele violaria as leis de Veneza e teria todos os seus bens confiscados.

Diante desse argumento irrefutável, Shylock desiste de sua pretensão. Mais do que isso: a advogada ainda consegue reverter a situação, invocando uma norma local segundo a qual aquele que atentasse contra a vida de um cidadão veneziano perderia suas posses, consolidando a vitória de Antonio.

É impossível não lembrar de O Mercador de Veneza quando nos deparamos, nos dias de hoje, com as acusações infundadas de litigância predatória dirigidas à advocacia, especialmente àqueles que atuam na defesa do consumidor contra instituições financeiras.

Assim como na peça, em que se tenta inverter o papel de vítima e algoz, presenciamos uma narrativa distorcida em que o advogado — que busca garantir o direito do vulnerável — é acusado de abusar do Judiciário, quando, na verdade, os verdadeiros predadores são os bancos e financeiras que, ao praticarem ilegalidades, abarrotam o Poder Judiciário com milhares de ações geradas por suas próprias condutas ilícitas.

A tentativa de rotular o advogado como “predatório” é, muitas vezes, uma estratégia de quem deseja silenciar a advocacia combativa e esvaziar o acesso do consumidor à Justiça. Tal como Shylock, que busca esconder sua crueldade atrás da formalidade de um contrato, essas instituições tentam ocultar suas práticas abusivas apontando o dedo para aqueles que denunciam as irregularidades.

Assim como a astuta Pórtia, cabe à advocacia resistir a essa inversão perversa de valores, e olhar além da superfície, encontrar nas entrelinhas do contrato as saídas jurídicas capazes de garantir justiça ao seu cliente.

Defender o consumidor não é litigância predatória — é exercício legítimo da advocacia, é cumprir o munus constitucional de garantir o acesso à ordem jurídica justa, como assegura o artigo 133 da Constituição Federal. É, sobretudo, dar voz a quem é silenciado pelas engrenagens do sistema financeiro.

Por Priscila Laps De-Bona, advogada, especialista em direito do consumidor e membro da Comissão Nacional de Direito Bancário da ABA e da Comissão Estadual de Direito Bancário da OAB/SC


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